Essa é uma publicação em parceria com o projeto Pílulas do LSD, do Laboratório de Sistemática e Diversidade da UFABC. Leia mais sobre a eussocialidade e muitos outros assuntos no Link.
Você é um indivíduo? Uma ameba é um indivíduo? Imagino que a maioria das pessoas tenham respondido “sim” para essas perguntas sem ter que pensar muito, né? Mas e uma célula do seu coração, por exemplo, ela sozinha é um indivíduo? Para essa pergunta, a maioria das pessoas provavelmente tenha respondido que não. Mas você já parou para se perguntar o por quê? Sabendo que existem indivíduos unicelulares e indivíduos multicelulares, podemos dizer então que em um momento da evolução alguns indivíduos unicelulares abdicaram de sua individualidade para formarem um indivíduo multicelular? Um pouco filosófico, não? Mas o legal é que o tipo de sociedade que os cupins vivem e a teoria da evolução podem nos ajudar nesse questionamento! Segue o fio!
Os cupins são classificados como organismos “eussociais”. Esse prefixo “eu”, significa “verdadeiro”, ou seja, eles são verdadeiramente sociais. Em sua definição mais aceita, a eussocialidade existe quando se tem sobreposição de gerações, cuidado cooperativo com os jovens, e castas de indivíduos que se reproduzem e outras não. Nos cupins, por exemplo, suas castas de reprodutores são os alados, reis e rainhas, e as castas que fazem as demais funções na colônia são os operários e os soldados. A eussocialidade não é exclusiva dos cupins, ela surgiu independentemente diversas vezes na história da vida, incluindo em outros insetos, além de algumas aranhas, crustáceos e até mesmo em mamíferos, como o rato-toupeira-pelado.
Tá, mas o que que isso tem a ver com individualidade?! Então, as colônias dos animais eussociais muitas vezes são comparadas à um superorganismo, ou para falar a mesma língua aqui, um super-indivíduo: “Podemos dizer que o alimento em uma colônia é compartilhado a tal ponto que se pode falar num estômago comunal. As informações são compartilhadas tão eficientemente por sinais químicos, pelo tato e vibrações que a sociedade comporta-se quase como se fosse uma unidade com um sistema nervoso e órgãos dos sentidos próprios. Invasores são reconhecidos e atacados quase com a seletividade do sistema de reação imunológica do corpo. A temperatura dentro de um ninho é regulada, mantendo certa homeostase. As castas reprodutivas são análoga às nossas próprias células reprodutivas nos testículos e ovários. E os operários e soldados estéreis são análogas ao fígado, músculo e células nervosas” (Adaptado do livro “O Gene Egoísta”).
Espera!! Então quer dizer que um operário de cupim não é um indivíduo?! Bom, levando em consideração essa analogia, um operário de cupim é tão indivíduo quanto a célula do seu coração é!
Muito bem, agora que criamos a analogia da evolução da multicelularidade com a evolução da eussocialidade, vamos falar da teoria da evolução.
Os seres vivos evoluem por seleção natural, isto é, os indivíduos que se reproduzem mais, deixam uma contribuição genética maior para a geração seguinte, fazendo com que seus genes, e consequentemente suas características herdáveis sejam selecionados, e com o tempo aumentem sua proporção na população. Já os genes e características daqueles indivíduos que não se reproduzem, ou se reproduzem pouco, tendem a desaparecer com o tempo. Acontece que na sociedade dos cupins, alguns indivíduos perdem a capacidade de se reproduzir. Da mesma forma, a maioria das nossas células não passam seu material genético para próxima geração. Mas então como fica a seleção natural? Os mais aptos não são os indivíduos que conseguem se reproduzir mais, passando seus genes para frente? Por quê os cupins operários e soldados abrem mão de sua capacidade de se reproduzir para cuidar dos filhos do rei e da rainha, ou morrem para defender a colônia? Ou por que a maioria das células do seu corpo também abrem mão da reprodução para a manutenção da sua vida como um indivíduo?
Esses problemas foram percebidos pelo próprio Charles Darwin, que escreveu em relação às castas estéreis dos insetos sociais:“… uma dificuldade que a princípio pareceu insuperável para mim e fatal à minha teoria”. Na época de Darwin não se conhecia a genética, e esse problema só viria a ser resolvido mais de 100 anos depois, por William Hamilton. Esse pesquisador, que inclusive trabalhou por um tempo aqui no Brasil, propôs uma extensão da seleção natural: a seleção de parentesco.
De forma simples, a seleção de parentesco diz que, mesmo você não se reproduzindo, seus genes podem ser passados adiante por através de seus parentes. Para organismos multicelulares com reprodução clonal, isso é relativamente fácil de explicar, uma vez que todas células compartilham 100% do material genético. Para colônias de insetos, o material genético compartilhado não é 100% (exceto alguns afídeos clonais), mas ainda assim existe muito compartilhamento de material genético entre os membros de uma colônia. Ou seja, apesar do soldado de cupim “sair no prejuízo” por ajudar seu irmão, no final uma parte de seus genes serão passados para a próxima geração através do sucesso de seu familiar.
A evolução das (eus)sociedades e dos organismos multicelulares passaram por diversos estágios, de forma lenta e gradual, até chegar no nível de complexidade que vemos hoje. Alguns organismos unicelulares vivem em pequenos aglomerados de células, da mesma forma que existem sociedades em diferentes níveis de complexidade. Mas ao chegar nos estágios de “organismo multicelular” ou “eussociedade”, a sobrevivência de cada unidade passa a ser dependente do todo. Nesse ponto a seleção para de agir nas unidades do nível abaixo (células ou cupins em si) e passa a agir no nível acima (pessoas e colônias de cupim).
Assim, podemos perceber porque o ser humano, a ameba e a colônia de cupim se encaixam no conceito de indivíduos. A ameba se reproduz e sofre seleção, uma pessoa se reproduz e sofre seleção, e, surpreendentemente, no caso de superorganismos como os cupins, a colônia que se reproduz e sofre seleção!
Vejam o vídeo produzido pelo pessoal do Pílulas do LSD:
Texto por Gustavo Pires Matheus
Publicado originalmente em 30/04/2020
Referências:
Crespi, B. J. . & Yanega, D. The definition of eusociality. Behav. Ecol. 6, 109–115 (1995).
Korb & Heinze. Ecology of Social Evolution. Journal of Zoology (2008).
Foster KR et Al. Kin selection is the key to altruism. Trends Ecol Evol 21 57-60 (2006)
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