Conheça a história de pequenos besouros que conseguem quebrar a barreira de defesa de uma colônia de cupins, viver entre eles sem serem percebidos, e ainda utilizar os operários de cupins como motoboys para levarem suas larvas para fora do ninho e se desenvolverem!
O sucesso dos insetos sociais é inegável e uma importante característica associada a esse triunfo é a refinada capacidade de organização desses indivíduos em uma colônia ou sociedade. As tarefas que devem ser realizadas por qualquer organismo individual para sobrevivência - procura de alimento, proteção e reprodução - é feita de forma cooperativa entre os integrantes dessas sociedades. A integração é tão complexa que já foi proposta a ideia de que colônias de insetos sociais sejam “superorganismos”.
Os chamados “termitófilos” são alguns dos animais que conseguiram furar o bloqueio do eficiente sistema de defesa das sociedades de cupins. Basicamente podemos considerar “termitófilo” todo organismo em que pelo menos parte do seu ciclo de vida é dependente dos cupins. Os besouros estão entre os mais bem-sucedidos termitófilos e aqueles mais especializados. Essa especialização é tanta, que alguns deles desenvolveram uma morfologia que muitos pesquisadores acreditam que o besouro mimetizaria os cupins, e o intruso, teoricamente, estaria camuflado entre os donos da casa, produzindo o sinal: “sou um de vocês!!”. O nome dessa morfologia diferente é “fisogastria”, isto é, esses termitófilos possuem um grande alargamento no abdômen (veja as Figuras 1 e 2).
Essa história de camuflagem, no entanto, devo dizer que é um pouco mais complicada do que parece. Os operários e soldados dos cupins são cegos (não possuem olhos), então de que adiantaria se parecer com um deles? Os cupins vivem em um mundo químico, onde a comunicação entre os indivíduos de uma colônia é principalmente feita por feromônios. Desta forma, os termitófilos precisam “falar a língua dos cupins” para se infiltrar em suas colônias: sabemos que besouros termitófilos possuem glândulas que só são encontradas em outros besouros que compartilham esse mesmo estilo de vida, estando ausentes naqueles que não tem relação com cupins. Mas, voltando ao mimetismo visual, uma das possíveis explicações é que esse artifício, na verdade, seria uma resposta a predadores que enxergam bem. Isso é, se parecer com um cupim, entre inúmeros cupins, provavelmente reduziria a chance de ser predado (como discutirei mais abaixo).
Uma outra explicação é que essa forma fisogástrica não seria mimética e fosse apenas um subproduto de algo (seja lá o que for) que é útil. Edward O. Wilson, no livro The Insect Societies, inclusive ironiza a ideia de que a fisogastria em besouros termitófilos seria um caso de mimetismo, dizendo que em vista lateral aquelas “duas faixas” (formadas pela curvatura do abdômen) nem remotamente lembra um cupim (Vendo as Figuras 1, 2 e 3, o que você acha? Concorda com o Wilson?).
A descoberta dos primeiros termitófilos e sua estranha biologia
Apesar da termitofilia estar presente em uma variedade de grupos taxonômicos, e evoluído no mínimo cerca de 40 vezes, o aparecimento desse fenômeno entre os grupos animais não foi democrático: originou-se pelo menos 12 vezes em uma única família de besouro: Staphylinidae (Kistner, 1969). Esse é um dos grupos mais diversos entre os besouros e conta com o número impressionante de mais de 60 mil espécies conhecidas (Newton, 2017). Para ser mais preciso, há um subgrupo dentro de Staphylinidae, Aleocharinae, que parece ter uma tendência em evoluir a termitofilia: dessas 12 vezes, 11 delas ocorreu em espécies desse grupo. Aleocharinae conta com mais de 15 mil espécies descritas (Thayer, 2016) e cerca de 650 são termitófilas (Kanao et al., 2016).
O entomólogo dinamarquês Jørgen Christian Matthias Schiødte, em 1853, foi quem trouxe ao nosso conhecimento o primeiro registro de animais associados a cupins, um fenômeno antes conhecido apenas em formigas. Tratava-se de três espécies sul-americanas de besouros, sendo duas do gênero Corotoca e uma de Spirachtha, associados a cupins do gênero Constrictotermes. Em seu trabalho original, Schiødte estava claramente impressionado com a forma atípica do abdômen desses termitófilos, que era “extraordinária”.
Apesar de se saber muito pouco sobre a biologia de termitófilos, esses animais vem sendo cada vez mais estudados, principalmente com o uso de espécies do gênero Corotoca, que acabou se tornando um modelo para estudo desses animais. Se conhecem espécies de Corotoca associadas a duas espécies de cupins da América do Sul, muito embora a maioria seja encontrada exclusivamente com Constrictotermes cyphergaster – uma espécie de cupim que ocorre principalmente na Caatinga e Cerrado.
É interessante que esse gênero está incluído em um dos grupos mais modificados entre os termitófilos, geralmente com alto grau de desenvolvimento de fisogastria. Aliás, nesse grupo do qual Corotoca faz parte, há espécies que possuem projeções a partir do abdômen, que os fazem parecer ainda mais com cupins quando vistos de cima! A ponta do abdômen seria a “cabeça” do cupim, enquanto as projeções “simulariam” as antenas e pernas (Veja novamente a figura 3). Se esse for o caso, Richard Dawkins (1996) em A Escalada do Monte Improvável não estava exagerando ao chamar o fenômeno como “um dos maiores espetáculos em toda história natural”.
Descoberta de Schiødte se torna ainda mais notável, porque os dois gêneros de termitófilos descritos por ele (Corotoca e Spirachtha) são os únicos exemplos confirmados de viviparidade em toda a família Staphylinidae!
A viviparidade em Corotoca
A viviparidade é caracterizada pela retenção de ovos no trato reprodutivo da fêmea e é marcada pelo desenvolvimento do embrião dentro do organismo parental, ao invés de ocorrer fora, como na oviparidade. É algo muito comum em vertebrados (com notável exceção das aves), mas relativamente incomum em invertebrados, incluindo insetos (ênfase para “relativamente”, já que a viviparidade em insetos abrange uma infinidade de grupos).
Desde sua descrição original, em que Schiødte afirmou ter encontrado larvas dentro do abdômen das fêmeas de Corotoca, se sabe que as espécies desse gênero são vivíparas. Cada fêmea consegue carregar três ovos de uma vez, e cada ovo possui um “endereço” dentro do abdômen, com embriões apresentando desenvolvimento assincrônico, ou seja, se desenvolvem em tempos diferentes. O ovo localizado no ápice do abdômen (segmentos V, VI e VII) é o mais antigo e contém o embrião no estágio mais avançado de desenvolvimento. Os dois outros ovos ficam na base do abdômen (segmento IV), exatamente na curvatura, cada qual carregando embriões em diferentes estágios de desenvolvimento (Zilberman, 2019) (veja as figuras de 4 a 9). Cada ovo é cheio de vitelo (energia para o desenvolvimento!) e provavelmente tem recurso suficiente para nutrir o embrião, que irá se desenvolver em uma larva. Mas uma pergunta que por muito tempo foi um mistério era: onde afinal, Corotoca deposita suas larvas?
Apesar de se conhecer apenas um número limitado de imaturos de termitófilos, era inquietante o fato de nunca se ter encontrado larvas de Corotoca dentro de ninhos de Constrictotermes. As espécies de Corotoca provavelmente foram aquelas mais coletadas dentre todos os termitófilos durante a história. Charles C. Seevers (1957), em sua monografia sobre besouros termitófilos, lançou a seguinte hipótese: as larvas eram depositadas em estágio avançado de desenvolvimento e logo viravam pupas. Isso explicaria por que as larvas não são encontradas, mas nenhuma evidência havia surgido corroborando essa hipótese. Pelo contrário, Oliveira e colaboradores (2018) fizeram a interessante descoberta de que as fêmeas de Corotoca depositavam a larva na trilha de forrageamento de Constrictotermes cyphergaster. Uma trilha de forrageamento é formada principalmente por operários em busca de alimento, cercados por soldados que ficam nas margens oferecendo proteção.
Para a fêmea do besouro sair do ninho a trilha precisa estar a todo vapor. Nenhuma fêmea de Corotoca vai sair se a quantidade de cupins na trilha for baixa, e além disso, ela não deposita a larva em qualquer lugar da trilha e os eventos que se desenrolam são mais estranhos que a ficção: a fêmea caminha entre os cupins (sempre pelo centro da trilha) até certo ponto da trilha (a distância pode variar de espécie para espécie, como aponta Moreira et al., 2019) e então dá uma parada súbita para expelir a larva. A larva é expelida de cabeça para baixo e fica literalmente pendurada na ponta do abdômen da mãe, com a cabeça virada para o lado oposto. Ela então dá meia volta, situando-se de frente, em contrafluxo à trilha dos cupins. A fêmea fica se abaixando cada vez que se depara com um cupim, como se estivesse “cumprimentando” os nobres operários…, mas o que acontece, na verdade, é que ela estava tentando “colar” a cabeça da larva na cabeça do cupim. Quando ela consegue, o cupim ganha um requintado chapéu. No primeiro momento o cupim parece estranhar, mas logo volta a sua rota como se nada estivesse acontecendo, servindo como um veículo de dispersão para a larva. Enquanto isso a fêmea de Corotoca volta ao ninho (veja no vídeo abaixo). O número de ovos no abdômen da fêmea sugere que cada uma seguirá esse protocolo pelo menos três vezes ao longo de sua vida. Em um certo momento, a larva se desprende da cabeça do cupim e se enterra. A partir daí os desdobramentos são desconhecidos, mas em algum momento a larva mudará de instar, crescendo; e então passará pelo estágio de pupa, em que o adulto é “construído” lá dentro. Posteriormente o adulto deverá seguir a trilha química proveniente de alguma colônia de cupins, e o ciclo estará fechado com sucesso. É fascinante que a trilha desses cupins seja, como no nome do artigo de Oliveira et al. (2018) “maternidade” para esses besouros. Tão interessante quanto são as perguntas potenciais em relação a esses eventos.
O significado evolutivo da viviparidade em Corotoca
Uma das características da Biologia como ciência, e que a separa das ciências físicas, por exemplo, é o teor das perguntas com os seus “porquês”; e biólogos adoram fazer esse tipo de pergunta. Esses surpreendentes eventos que acabo de expor são suscetíveis a uma série dessas perguntas. Por que as espécies de Corotoca são vivíparas? Por que sair apenas com o fluxo alto de cupins? Por que uma larva de cada vez?
Uma explicação em comum e que cabe para qualquer caso de viviparidade é que a retenção da prole dentro do organismo parental seria uma estratégia para evitar os riscos potenciais que seus descendentes correriam se fossem liberados cedo. Mesmo com a redução da fecundidade acarretada pelo fenômeno, parece que em alguns casos vale a pena postergar o nascimento em troca da possibilidade de poder “escolher” uma outra localidade ou tempo. No caso de Corotoca, talvez a viviparidade tenha surgido como resposta ao perigo que os ovos correriam dentro dos ninhos e depois evoluiu para o cenário em que as espécies começaram a depositar a larva fora do ninho. Qual a vantagem da larva, e não o adulto ser o estágio dispersante e por que uma de cada vez? Consideremos hipoteticamente uma fêmea adulta como estágio dispersante. Se esse indivíduo for predado, note que não apenas ela deixará de existir, mas também todo o potencial de prole que ela carrega. Então, como no cenário real, se uma larva falhar, esse não é o fim da linhagem; e a fêmea ainda tem pelo menos mais duas chances para ser bem-sucedida. O fato de ser uma de cada vez, pode ser uma defesa contra predadores, para não ter o risco de virarem presas todas juntas; ou, uma proposta mais elegante, é a garantia que as larvas seguirão rastros químicos diferentes e atingirão variados ninhos, refinando a estratégia de dispersão.
Quanto ao fato da fêmea sair na trilha apenas quando o fluxo de cupins é alto, possivelmente se deve a uma menor chance de o besouro ser predado. Isso é, quanto maior a quantidade de cupins forrageando, menor a possibilidade de um predador escolher o besouro como alimento. Hipoteticamente, se uma fêmea sair na trilha com nove cupins, a chance seria dela ser predada seria de 1/10; mas se saísse com 99, reduziria para 1/100. Provavelmente há posições na trilha em que os indivíduos são mais suscetíveis a predação do que outras. Será que é por isso que as fêmeas de Corotoca caminham sempre no centro do fluxo?
Por fim, ainda há muito para ser descoberto. Apesar de algumas espécies de Corotoca serem utilizadas como modelo para compreender questões mais gerais sobre termitofilia, elas aparentemente têm uma biologia muito particular, e talvez seja hora de explorar ninhos de outras espécies de cupins (e consequentemente outros grupos de termitófilos) e trazer à tona uma diversidade de comportamento e estratégias tão inusitadas quanto essa de Corotoca.
Texto por Bruno Zilberman
Publicado originalmente em 02/05/2019
Bruno Zilberman
Museu de Zoologia da USP (MZUSP)
Laboratório de Coleoptera
São Paulo – SP, Brasil
Referências
- Dawkins, R. (1996) Climbing mount improbable. Penguin Books.
- Kanao, T., Eldredge, K. & Maruyama, M. (2016) A defensive body plan was pre-adaptive for termitophily in the rove beetle tribe Termitohospitini (Staphylinidae: Aleocharinae). BioRxiv. https://www.biorxiv.org/contente/early/2016/10/27/083881.
- Moreira, I.E., Pires-Silva, C.M., Ribeiro, K.G., Zilberman, B. & Bezerra-Gusmão, M.A. (2019) Run to the nest: A parody on the Iron Maiden song by Corotoca spp. (Coleoptera, Staphylinidae). Papéis Avulsos de Zoologia, 59.
- Newton, A.F. (2017) Nomenclatural and taxonomic changes in Stapyliniformia (Coleoptera). Insecta Mundi, 0595: 1-52.
- Oliveira, M.H.D., Vieira, R.V.D.S., Moreira, I.E., Pires-Silva, C.M., Lima, H.V.G.D., *Andrade, M.R.D.L. & Bezerra-Gusmão, M.A. (2018) “The road to reproduction”: foraging trails of Constrictotermes cyphergaster (Termitidae: Nasutitermitinae) as maternities for Staphylinidae beetles. Sociobiology 65, 531.
- Seevers, C.H. (1957) A monograph on the termitophilous Staphylinidae, Coleoptera. Fieldiana Zoology, 40: 1-334.
- Silvestri, F. (1901) Descrizione di nuovi Termitofili e relazioni di essi con gli ospiti: III. Bollettino dei Musei di Zoologia e Anatomia Comparata della Reale Università di Torino, 16 (398), 1–24.
- Thayer, M.K. (2016) (excl. Scydmaenindae). In: Beutel, R.G.; Leschen, R.A.B. (Eds.) Handbook of Zoology. 2 ed. Berlin, Walter de Gruyter. p. 39-442.
- Wilson, E.O. (1992) The insect societies. The Belknap Press.
- Zilberman, B., Pires-Silva, C.M., Moreira, I.E., Pisno, R.M. & Bezerra-Gusmão, M.A. (2019) State of knowledge of viviparity in Staphylinidae and the evolutionary significance of this phenomenon in Corotoca Schiødte, 1853. Papéis Avulsos de Zoologia, 59.
Incrivel amei que trabalho fenomenal…
Obrigado Iefferson!
Sou a Camila da Silva, e quero parabenizar você pelo seu artigo escrito, muito bom vou acompanhar o seus artigos.
Oi Camila, desculpa pela demora em responder.
Mas muito obrigado pelo comentário! Ficamos felizes, e esperamos você mais vezes por aqui! 😉
Parabéns e o artigo esta perfeito e bem explicativo sobre o
assunto. Infelizmente tem poucos sites abordando sobre
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Agradecemos pelo seu comentário. De fato, é difícil achar conteúdo assim na internet, mas aos poucos colaboramos com coisas novas. Seja bem vindo.
Sensacioncrível!
Artigo super bem escrito, detalhado e de fácil entendimento. Parabéns pelos estudos e pela divulgação!
Obrigado!